mardi, décembre 27, 2005

Pensatas ao acaso, ou fragmentos de crítica arbitrária

A forma romance é sempre um desafio ao tempo. Por definição, o romance dá-se no tempo, constrói-se no tempo, goza-se no tempo.
Dá-se no sentido de entrega, pois é gênero que busca no tempo sua completude, sua inteireza; no contrato chamado romance, o leitor deve aceitar o tempo como condição. Constrói-se, pois consome tempo. Esfacela-se a diferença entre construir um romance e uma catedral. Ambos demandam projeto, análise, execução e acabamento. Ambos estão submetidos à ordem de um trabalho cotidiano, organizado e quase rotineiro. Goza-se, pois nunca lemos o mesmo romance duas vezes. A leitura está submetida ao contato do leitor com o mundo. Aqui, encontramos um fenômeno comum a qualquer manifestação literária: o fenômeno da experiência (visão de mundo e erudição) capaz de enriquecer o deleite artístico e que, a meu ver, encontra no romance seu melhor exemplo.

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A poesia é um tanto refratária ao romance. No que diz respeito ao tempo, o poeta dá-se o direito de certa alienação.
Poesia é canto que se contorce no verbo e, para o poeta, a palavra às vezes é desculpa para todo o resto, que ousamos chamar de “conteúdo”, “ideologia”, “mundo cão” e demais patacoadas. Cantar é tentar dizer no tom, na performance, mais do que as palavras dizem.
Não quero dizer, contudo, que a poesia esteja fora do tempo. Tudo o que escrevemos e fazemos é íntimo de uma dada época, seus ideais e convenções. O que gostaria de frisar é que, para o poeta, o trabalho de lidar com o indizível da palavra é muito mais urgente em comparação com o prosador. Do contrário, não é poesia.

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...dê-me tuas mãos criança, pois o resto, todo o resto, é noventa por cento...

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O que acabo de dizer no primeiro fragmento é inspirado no que um grande pianista, cujo nome já me escapa, disse certa vez a respeito de seu percurso musical.
Disse ele que no começo todos adoram Mozart. É um compositor jovial, potente e sabiamente equilibrado. Depois de certo tempo, é impossível não perceber o valor de Bach, sua importância, seu peso. Em um terceiro passo, os músicos afogam-se nos românticos (Beethoven e Chopin), em seus ritmos pesados e solenes; como numa busca pelo tom grave. Todavia, espantosamente, já no fim dos estudos, e da vida, todos voltam a Mozart, maldizendo os dias em que pararam de tocá-lo! E, o mais espantoso, tocando-o exatamente da mesma forma como o executavam antes, e, ainda assim, de maneira totalmente diversa, assim como o filho pródigo encontra tudo exatamente da forma que deixara, mas sente, ao mesmo tempo, uma mudança tremenda em tudo que toca, para descobrir, mais tarde, que na verdade ele mesmo é quem mudou, quem muda sempre é quem toca.
A vida subordina-se aos sujeitos da ação, modificando-se de acordo com seus movimentos, voluntários ou não. Os objetos, em si, não têm um valor pré-concebido, determinado, fixo. Somos homens, criamos; símbolos e todas as outras coisas.

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Acredito que seja interessante pensar o que foi exposto acima no que toca a vida ideológica de nosso tempo. Conferem à ideologia, qualquer que seja, um posto de exagerada importância funcional, como se ela fosse capaz de, por si mesma, nos “dizer” algo, nos “apontar” um caminho. A mesma observação pode ser feita com relação à psicanálise e seu maior objeto, o “ser”. Porém, deixo o tópico em aberto. O assunto é por demais controverso para ser tratado assim, tão impunemente.

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Voltando ao romance, é preciso dizer que não apenas no nível da experiência encontramos a arquitetura do fenômeno tempo. É possível observá-lo, também, no que toca a gênese da forma.
Desconfio muito dessa mistura de instâncias, (no caso, literatura e sociedade), mas é inegável o fato de que o romance vem à tona com o fim de uma concepção estática do tempo, ainda comum na nobreza de fins do século XVIII. O romance é a forma móvel por excelência, cujas partes e peças elementares podem ser cambiadas e modificadas livremente. Portanto, o gênero que despontava com força no século XIX estaria mais adaptado a um tempo que se mede em escalada (o tempo produtivo), e não mais em ciclos meramente divisórios, nos quais não conta a mudança, mas tão somente o registro do tempo. O romance é a forma do tempo em que se aceita a mudança.

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Preste atenção nos personagens... Pelo menos nos bons romances, eles começam de um jeito e terminam de outro. Ou começam de um jeito, ficam de outro e outro, e no final voltam para o começo. Ou ainda ficam girando para todo lado que nem biruta de aeroporto... Há mudança...

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Pode parecer uma proposta boba, mas sempre vale como exercício. Para provar o quão atrelados estão romance e tempo (em suas diversas variantes), procurem se lembrar de quantas vezes tiveram a rara oportunidade de, sossegadamente, pegar um romance e lê-lo, de cabo a rabo, sem interrupções.
Sem ter de lê-lo em pé no metrô, ou no ônibus, ou rapidamente, no horário de almoço, sem aquelas “pescadas” insolentes, tão naturais em olhos cansados de labuta, sem ter de parar para discutir com a(o) namorada(o), sem ter de se preocupar com o horário em que tem de acordar no dia seguinte, com o horário do médico, do veterinário, do dentista, sem ter de se preocupar com o horário em que vai sair dos consultórios do médico, do veterinário ou do dentista, ou ainda, tão simplesmente, sem ter de parar para cumprir com nossas necessidades cotidianas mais banais, como comer e beber água.
O romance nasce com a escalada da vida e com seus percalços inacabados, cansativos, entediantes e, por vezes (ah, a esperança!) recompensadores. O romance nasce com esse impulso que nos faz levantar todos os dias, maldizer o tempo, o metrô, o trabalho, e que nos faz casar, ter filhos e nos emocionar com fins felizes de filmes bobocas...
Enfim, a construção do significado de um romance, a meu ver, está diretamente ligada a todas essas ligeirezas da vivência, arrisco mesmo a dizer que fazem parte da construção de seu significado, já que, obviamente, durante a composição de uma obra é difícil crer que o autor também não esteja sujeito a desafios semelhantes aos que temos durante a leitura. Não sei para você, leitor dessas linhas, mas pensar dessa forma me ajudou a conceber o romance não como um gênero fechado, inteiro, que nos obriga a abarcá-lo como se abarca uma enciclopédia ou um livro de história, mas como um gênero integrado ao fluxo dos acontecimentos, à sua energia, a uma pulsação vibrante e sangrenta que podemos – de forma arbitrária, mas quem se importa? – chamar de vida.

dimanche, décembre 18, 2005

Testado e aprovado

Neste domingão de Deus, Gostaria de falar um pouco sobre La Modification, romance de Michel Butor, sem dúvida, um útil investimento de seu tempo.
No livro, um homem de meia idade, representante de uma firma de máquinas de escrever, em uma manhã qualquer toma um trem como viajante de terceira classe. Personagem central do livro (para não dizer o único), tem como objetivo fazer uma surpresa para sua amante, em Roma, jovem que ele conheceu em uma de suas viagens de negócios.
Porém, a surpresa não se limita à sua presença. Ele pretende anunciar que conseguiu uma ocupação para ela, em Paris (confirmando uma promessa). Dessa forma, eles poderão, enfim, viver juntos, pelo menos, se não houvesse um último empecilho: ele precisa separar-se da esposa, ou criar a coragem para tanto.
Tal situação dramática, apesar de sua simplicidade, vai ser a força motriz, a espinha dorsal, do que movimenta o livro: as reflexões às quais este homem se abandona. Elas tomam a forma de prosaicos pensamentos, memórias incertas, banais considerações sobre a vida, ou, o mais marcante, puras fantasias, quase pequenos romances sabiamente encaixados numa narrativa mestra, a respeito da paisagem e dos companheiros de viagem.
Tamanha a multiplicidade de fatores estruturais, é quase impossível resumir o romance em uma simples sinopse. Prova disso é a virada de perspectiva provocada por meio do narrador, na segunda pessoa do plural (vous, o nosso esclerosado vós), o que praticamente nos insere na narrativa.
Tem meu carimbo (e meu carinho), portanto, essa jóia do nouveau roman francês.

dimanche, décembre 11, 2005

Reflexões e o domingão gordo

sunday comes and sunday goes
sunday always seems to move so slow
to me - here she comes again
a perfect ending to a perfect day
a perfect ending what can i say
to you - lonely sunday friend
with you - sunday never ends

Sunday – Sonic Youth

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Tinha que entregar uma monografia... Esbaforido com o trabalho e com as necessidades tão pouco necessárias do cotidiano, cavuca a folha que o professor entregara. Lembra-se de que era alguma coisa sobre Tolstoi, oh! Deus!
A seu lado, passa uma senhora cujo sorriso, de tão velho, já é memória. Ela estende a mão, e ele, corado, aperta o passo com a cara enfiada na mochila.

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Domingo tem essa cara de velha obesa vibrando com o Raul Gil...

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Um amigo recém-desquitado perguntou-me o que os solteiros fazem nos fins de semana. Disse que costumo trancar-me no quarto, beber cerveja, ler Fernando Pessoa e chorar, muito, mordendo o travesseiro.

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...percebo-te à frente da chuva do estio: a meio-passo de perda, e meio-sonho, em meio-fio.

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Se futebol é o ópio do povo, ideologia é a toca dos trouxas.

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É tarde, mas vale: Tetracampeão! Tetracampeão! Tetracampeão!

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Gosto muito de ler a Veja, porém, apenas no banheiro. Sou dos que não separam a leitura do ofício crítico.

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E lá vem o Inter reclamando... Andam dizendo que tudo se deve ao fato de existir um complô do Sudeste contra o Sul e coisas que tais e O Tempo e o Vento e memoriais. Que me desculpe Érico Veríssimo, mas tem que ser gaúcho mesmo para ter todo esse complexo de rejeição.

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- O que passa?
- Anda doendo, doutor, doendo...
- Deixe-me dar uma olhadela, coisa rápida!

O doutor franze o sobrolho. Num repente, o ar torna-se penoso e preocupado.

- O que é doutor? Vamos, fala homem!
- Sinto dizer-te, filho, é Brasil!

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Agora é oficial! Viver faz mal à saúde! Descobriram-me uns empecilhos no fígado. Vou ter de procurar algo a mais para me consolar nos fins de semana. A pinga já me corrói os órgãos.

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O momento forte do trabalho nessa sexta-feira foi o comentário da mais nova revisora a respeito de um papel de iogurte que está grudado há séculos no lixo ao lado de sua mesa... Todos riram... Eta, vidinha de merda meu Deus!

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E agora, uma questão: dá para agüentar a vida sem pinga?

dimanche, décembre 04, 2005

Mera memória

Mas o que eu queria, hein? Drummond foi funcionário público e também bateu cartão por muito tempo. Sou poeta. Queria o ascetismo da arte (o marmóreo Mallarmé), da poesia, mas pesa o empecilho da escrita, a vida. Horários, prazos, reuniões e toda sorte de pedras que entulham nossa vida e nossos rins: escravo de símbolos sociais e necessidades fisiológicas. “Vou ser o Machado do Lirismo”, pensava. Chorava com Baudelaire (ainda choro, mas agora é tristeza). No final, a velhice é essa memória dos ossos que não guarda muita arte, essa pretensão boba, e válida, de ser mais que a vida. Não sobra mais do que um retrato pardo que aquece o estômago e traz um cheiro, um toque, um tudo; sublimação na carne. De repente, assumo, naquele café sujo no centro, a ascese do tato: ela vira, me olha, sorriso, me toca, todo empolgado a falar de livros: “Me beija logo vai!”.