dimanche, janvier 29, 2006

domingo tem essa cara de chumbo e meia velha, com o macarrão da tua mãe e fim de trilho.

e chuvoso ainda...

***

a sensação do desperdício. o mundo pra lá de você e da janela: a cisma do olho dela. cético e ascético tão natural e fértil de repente um cadeado; canto findo que cinza, encalacrado, um canto a ser gritado.

você sabe dividir-se. é tudo o que aprendeu.
você sabe.

a culpa de tudo você sabe é sua a culpa de tudo; esse tédio, homem, essa falta de savoir vivre. a vida está aí, pensa, vai-se indo...
mas falta o azul, a flor no fim, o tato do sol, o balanço no jardim. no final esse gosto de lama essa gana essa gama de coisas sem sal afinal o que falta de travessia e por isso... um sorriso... uma mão... uma mão com um lábio e perdão, de novo o sorriso, e o dente do siso... talvez sorriso e perdão que te façam sentir sensatez e não ligar tanto assim por ter perdido a vez...

lundi, janvier 23, 2006

Clap, clap, clap, clap...

"Detesto o teatro por considerá-lo, do ponto de vista histórico, uma forma de arte primitiva e pútrida; algo que cheira a ritos da idade da pedra e outras sandices tribais, apesar de algumas manifestações individuais de gênio, tal como, por exemplo, a poesia elisabetana, de que o leitor sagaz pode perfeitamente desfrutar sem sair de casa."



PS: palavras da garganta ácida daquele que talvez seja o herói mais controverso da história da literatura, Monsieur Humbert Humbert, o Impagável (Lolita, NABOKOV, Vladimir – Companhia das Letras, 2003).

mercredi, janvier 18, 2006

Digressões na Clínica a partir de Foucault

Marcos Guilherme Belchior de Araújo



Para os que acompanham a obra de Michel Foucault, logo percebem que aquilo que se insinua no título do presente escrito talvez, à primeira vista, pareça ousado em tentar esboçar uma leitura entre duas vertentes conceituais, não diretamente tematizadas pelo pensador francês, mas cuja mútua implicação e interferência apontam para um viés particular no pensamento e acolhimento da diferença.
A perspectiva de algumas propostas contemporâneas de pesquisa nos convoca a entrelaçar as diversas contribuições e hibridações do pensamento de Foucault na composição de novas possibilidades de ação, de criação e de vida.
Nesse sentido, nos deparamos com um platô relativamente pouco explorado, porém bastante fecundo, que é o de reposicionar a clínica, ou melhor, uma ético-estético-política no fazer e no pensar a clínica, frente ao trabalho foucaultiano, menos no modo de um embate dialético ou crítico-destrutivo, e sim no intuito de visualizar novos agenciamentos que potencializem a dimensão estratégica que esse encontro suscita para o campo psi.
A tarefa a que me proponho, e desde já reconhecendo seus limites, é a de apontar linhas potenciais de investigação para a perspectiva da clínica a partir de algumas configurações contemporâneas da produção de subjetividade, re-orientando a discussão para o interior do campo problemático de uma ética do não-fascismo, conforme alude Foucault no prefácio à edição americana d'O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari.

* * *

A princípio, gostaria de propor um estatuto digressor para a clínica, gostaria de pensá-la, a priori, como necessariamente pertencente a um sempre fora, a um imanente exterior. Quer dizer, o sentido de clínica aqui adotado não se refere a um local ou situação determinados, tampouco a uma condição institucionalmente validada de funcionamento, muito menos a um certo jogo de regras e de práticas que definem um composto ou ontologizam um plano em si. Descarto, como percebem, todas as representações que vêm de cima, que esquadrinham e que determinam em dado território: os papéis, os atores e suas respectivas prescrições.
Quando menciono o termo ‘clínica', considero, de antemão, que há uma dimensão clínica da realidade. Não se trata de uma psicologização do mundo, mas, ao contrário, implica observar o efeito das políticas de subjetivação atuantes na contemporaneidade, sua produção imaterial de mais-valia capitalística e suas conseqüências para a produção de subjetividade.
Falar de clínica hoje nos leva a tentar espreitar sua plasticidade, seus contornos móveis e suas íntimas ligações com os processos de subjetivação que lhes são co-extensivos.
Essa dimensão clínica da realidade caracteriza-se pelas relações que cada um estabelece consigo e com sua alteridade-mundo que, em sentido amplo, engloba coisas, pessoas e acontecimentos. De acordo com Suely Rolnik, há dois modos pelos quais a subjetividade se conecta, interage e apreende a experiência. O primeiro modo diz respeito a uma captura da experiência enquanto matéria-forma, convocando a percepção e o plano das representações e dos valores em curso. O outro modo consiste em apreender o mundo como matéria-força, convocando a sensação, acionada no encontro do corpo com as forças afectivas e intensivas que o interpelam.
Conforme alude Rolnik, entre essas duas formas de apreensão do mundo - no circuito das representações e no circuito das sensações - reside um paradoxo: de um lado, temos a presença dos novos diagramas de sensações que pulsam na subjetividade, forçando a desestabilização dos mapas vigentes e solicitando territórios originais para a assimilação da experiência; de outro lado, temos a resistência e o mapa das figurações tradicionais que não servem para amparar as sensações emergentes. O paradoxo entre esses dois planos de vida subjetiva pressiona os contornos das formas existentes, provoca uma crise e impulsiona a subjetividade a redesenhá-los. Diante disto, forças inventivas são mobilizadas, permitindo à subjetividade criar novas configurações de si, do mundo e das relações entre ambos, de modo a permitir a expansão da vida e a luta por sua autonomia. Para a autora:

"O paradoxo entre esses dois vetores, a força-invenção que ele mobiliza e a tensão que disto decorre são portanto próprios da vida em sua potência de variação: eles são constitutivos do processo vital de individuação que vai organizando e estabilizando novos contornos, enquanto desestabiliza e desfaz outros."

Acontece que, esse movimento de produção e afirmação diferenciante, esse processo de invenção para a vida foi (e é), ainda segundo Rolnik, cafetinado a serviço da acumulação capitalista. O capitalismo atual passa a investir na potência de criação e de variação da vida, ao mesmo tempo esvaziando a subjetividade de suas energias de autonomização - tornando-a letárgica - e fabricando territórios-padrão homogeneizados para configurar os tipos de subjetividade e de sociabilidade adequadas para cada nova esfera de mercado que se inventa.
O capitalismo bombardeia a subjetividade com as demandas que fomenta, faz reverberar seu mecanismo funcional por sedução - investe na realização dos desejos, das promessas, do sucesso, investe em imagens, estilos, ambientes, em modos de se vestir, modos de se comportar, modos de sentir, de pensar e de agir - para depois solicitar nossa correspondência, nossa fidelidade e nossa ‘inclusão'.
Através das máquinas da comunicação e da informação, mais particularmente do marketing e da publicidade, o capitalismo contemporâneo produz, de modo ininterrupto, os contextos imateriais ou, se preferirem, as formas de vida que dão consistência às sempre novas esferas de mercado emergentes e aí veiculadas. De acordo com Maurizio Lazzarato, trata-se de um processo de construção de mundos e de seus signos associados, signos de comunidade, de pertencimento, de tranqüilidade, de bem-estar, signos, enfim, que constituem o alicerce sobre o qual se estruturam os meios de produção/consumo fabricados neste interstício. Em outras palavras, primeiro se cria um mundo e suas atrações, as imagens e seus valores, os afetos e sua flexibilização, depois se veiculam os objetos que serão consumidos e os perfis dos sujeitos idealizados para habitar nesse mundo criado.
Um dos seguimentos de mercado que tem crescido muito nos últimos anos é o dos chamados "esportes de aventura". Muito além do valor de uso de determinados equipamentos, o que fascina são os estilos de vida comercializados e consumidos independentemente do contexto que venham a ocupar. A idéia é a de tentar fazer parte de um mundo, tentar buscar ecos de si, sentir-se pertencente a algo, tornar a vida mais emocionante, mas para isso necessitamos adquirir os produtos ‘adequados' que permitam o acesso a essas experiências de alegria e satisfação.
Nas olimpíadas de Atenas, alguns exemplos são interessantes. As propagandas tentavam articular e aproximar as dificuldades e os desafios da vida cotidiana com as performances dos atletas olímpicos, associando a presença de determinada empresa ou marca à possível superação dos limites por parte dos seus "tele-atletas". É o caso da mãe de família, cujo tempo era cronometrado de uma ação a outra: acordava, tomava café, arrumava seus filhos e os levava a escola, depois seguia para o trabalho e chegava exatamente um minuto antes do seu chefe, fazia cara de competente e ganhava uma medalha no final do comercial, ao som da mensagem publicitária: "porque a vida é uma eterna competição".
Segundo Lazzarato, esse jogo de relações, essa engenharia que circula em torno de elementos abstratos - porém não menos reais - que passa a determinar as novas relações econômicas e vitais na atualidade, fomentando a produção de valores, a manipulação dos afetos e a regulação da informação, constitui o chamado ‘trabalho imaterial'.
Com o relativo enfraquecimento dos modelos fordista, taylorista e disciplinar de organização social e produtiva, e com a emergência de novos dispositivos tecnológicos, como a robótica, as redes digitais, a biotecnologia, as tecnologias da comunicação, dentre outras, o trabalho imaterial se consolida como um dos principais veículos da expansão capitalista contemporânea; constrói os produtos e ao mesmo tempo solicita formas de subjetivação; constrói relações sociais e valores para o mercado, regulando a comunicação entre a multiplicidade das mercadorias e os estilos e concepções de mundo de seus consumidores:

"A produção audiovisual, a publicidade, a moda, a produção de software, a gestão do território etc. são definidas através da relação particular que a produção mantém com o seu mercado e os seus consumidores. (...) O trabalho imaterial se encontra no cruzamento (é a interface) desta nova relação produção/consumo. (...) É o trabalho imaterial que inova continuamente as formas e as condições da comunicação (e, portanto do trabalho e do consumo)."

Lazzarato e Negri observam que o trabalho imaterial ao mesmo tempo em que dá forma e materializa as necessidades, o imaginário e os gostos do consumidor, na mesma medida promove suas mercadorias à dimensão de potentes produtoras de necessidades, do imaginário e de gostos. "A particularidade da mercadoria produzida pelo trabalho imaterial (...) está no fato de que ela não se destrói no ato do consumo, mas alarga, transforma, cria o ambiente ideológico e cultural do consumidor."
Nesse sentido, a produção imaterial deixa de estar situada ou remetida a esferas determinadas de circulação. Pelo contrário, o seu raio de ação, o seu circuito de funcionamento opera em consonância com as mais diversificadas redes existenciais, criando e recriando, a um só tempo, sociabilidade e subjetividade:

"Se a produção é hoje diretamente produção de relação social, a ‘matéria-prima' do trabalho imaterial é a subjetividade e o ‘ambiente ideológico' no qual esta subjetividade vive e se reproduz. A produção de subjetividade cessa, então, de ser somente um instrumento de controle social (pela reprodução das relações mercantis) e torna-se diretamente produtiva, porque em nossa sociedade pós-industrial o seu objetivo é construir o consumidor/comunicador. E construí-lo ‘ativo'."

Lazzarato e Negri concluem que, se o trabalho imaterial produz ao mesmo tempo subjetividade e valor econômico, ele articula e sinaliza de que modo o capitalismo contemporâneo tem invadido a vida em suas entranhas mais profundas e superado todos os obstáculos que não só separavam, mas também opunham economia, poder e saber.
Ora, se no trabalho imaterial percebemos de que maneira modos de vida são capturados, turbinados e manufaturados a serviço do capital, e que, neste jogo, formas de sociabilidade e de subjetividade são constantemente produzidas/consumidas, logo toda e qualquer atividade de inovação no território do trabalho imaterial, necessariamente requer, como matéria-prima fundamental e ilimitada para o acúmulo do capital, a mais-valia de vida: seus movimentos diferenciantes, suas linhas de fuga mais discretas, seus momentos poéticos, seu humor, sua tragicidade, qualquer coisa, enfim, que possa gerar lucro.
Entretanto, se nesta perspectiva do trabalho imaterial observamos uma modalidade de apropriação da vida e, portanto, uma modalidade de biopoder, quais seriam as aproximações e as interferências entre este biopoder "imaterial" e a noção de biopoder formulada por Foucault? E quais as implicações deste diálogo para o campo da clínica? Vejamos.

* * *

Para Foucault, a noção de biopoder corresponde, como todos sabem, à introdução da vida nos jogos do poder. O poder assume a função de gerir a vida sob um aspecto positivo, isto é, não mais o exercício do direito de vida e de morte por parte do soberano, mas antes se trata de "um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las." De acordo com o pensador francês, foi a partir do século XVII que essa nova configuração de um poder sobre a vida adentra no cenário ocidental. E através de duas formas principais: primeiro, por uma anátomo-política do corpo, na tomada do corpo como máquina: "no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos (...)". Além do aparelho disciplinar, o outro modo de apreensão da vida surge como uma biopolítica da população, onde se captura do corpo-espécie toda a mecânica do ser vivo e dos processos biológicos que o atravessam: "a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade", em suma, toda uma série de controles reguladores que submetiam a população a exames e avaliações precisos e minuciosos. Foram, portanto, esses dois pólos - as disciplinas do corpo e as regulações da população - que, de cima para baixo, tornaram possível a organização de um poder sobre a vida.
Michael Hardt destaca que justamente aqui reside o limite da investigação foucaultiana: ao ter concebido uma versão do biopoder focalizada apenas "de cima", incidindo sobre a "vida nua", separada de suas correspondentes formas sociais de produção.
Se, por um lado, as análises de Foucault apontam para o surgimento e a lógica funcional de um poder que descobre a vida como alvo de investimento, por outro lado não avançam no sentido de comportar a potência de variação do biopoder no período pós-moderno e pós-disciplinar. Hardt e Toni Negri, na medida em que reconhecem o mérito foucaultiano em trazer à luz a dimensão biopolítica, consideram que seu método de pesquisa manteve uma certa "epistemologia estruturalista" que "sacrifica a dinâmica do sistema, a temporalidade criativa de seus movimentos, e a substância ontológica de reprodução cultural e social".
Nesse sentido, a noção de um biopoder na realidade contemporânea encontra mobilidade e operacionalidade quando anexada ao ciclo da produção imaterial, uma vez que consegue conectar um plano de análise às práticas correspondentes, uma máquina abstrata e um funcionamento concreto, entendendo esse campo de forças como um sistema aberto de construção e desconstrução contínuas.
Descrevemos até aqui algumas figurações e tendências das políticas de subjetivação desenvolvidas pelo capitalismo mundial na atualidade e os dispositivos imateriais de apropriação e produção da vida, inerentes a tal mecanismo.
Contudo, se é na vida que as máquinas totalitárias encontram sua mais preciosa matéria-prima, acreditamos que é justamente a partir da própria vida que as forças de invenção e de singularização desencadeiam processos de autonomia e liberdade. Assim sendo, contra o biopoder imaterial teríamos uma espécie de biopotência, uma potência de criação e de expansão imanente à vida, que torna tangível a instauração de outras possibilidades de mundo.
Inspirados na idéia de uma biopotência, tentaremos compor, a seguir, um plano de inteligibilidade entre a proposta foucaultiana de uma ética do não-fascismo e algumas implicações para o pensamento de uma clínica da diferença.

* * *

Foucault prefacia a tradução americana do Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, que tem como título: "O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista." Neste escrito de poucas páginas, mas de uma virulência particular, Foucault ressalta a importância dessa obra, não como uma nova referência teórica que a tudo abarcaria mas, ao contrário, como um dispositivo para pensar de que forma o desejo povoa determinado campo social e político e como estes lhe são co-extensivos, sem o remetimento a quaisquer referências essencialistas ou universalizantes, a partir de análises que relacionam a produção desejante com a realidade e com a máquina capitalista, forjando assim respostas para questões concretas:

"Questões que se ocupam menos com o porquê das coisas do que com seu como. Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida?"

Daí, segundo Foucault, os três adversários com os quais O Anti-Édipo se defronta:

"1) Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da Verdade;
2) Os deploráveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta;
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (...): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini (...), mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora."

Com efeito, poderíamos afirmar que há um entrecruzamento dessas dimensões, onde determinadas forças são mobilizadas no sentido de subjugar a vida às esferas totalitárias políticas, técnicas e subjetivantes, e que ganham corpo naquilo que as atravessa por todos os lados: na forma de microfascismos atuantes em nossas miudezas cotidianas.
Nesse sentido, Foucault considera ser O Anti-Édipo um grande livro de ética, pois seu conjunto de idéias demarca e sinaliza um novo modo de existência e de pensamento. Ética, no sentido foucaultiano de uma operação ‘ascética' que o indivíduo realiza consigo - em seu corpo, em seus pensamentos, em suas condutas - de modo a produzir neles uma transformação, uma modificação, forjando para si um estilo de vida desejável, livre das "identidades sedimentadoras e das universalizações opressivas". Estilização essa que nos coloca diante de um trabalho de constante elaboração de nossa relação com o mundo e nos convoca a um desafio de detectar traços do fascismo em nossos pensamentos e em nossos comportamentos. É a partir de tal perspectiva que Foucault considera ser O Anti-Édipo uma introdução à vida não fascista, um "manual da vida cotidiana", cujos princípios essenciais ele assim nos descreve:

"· Liberem a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante.
· Façam crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização piramidal.
· Livrem-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, as castrações, a falta, a lacuna) que por tanto tempo o pensamento ocidental considerou sagradas, enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefiram o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas. Considerem que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade."

A proposta foucaultiana para uma ética do não-fascismo nos permite re-pensar nossas práticas em todos os níveis e buscar situá-las em quais relações de poder se interconectam e que configurações assumem no dia-a-dia. Ao mesmo tempo, tal perspectiva nos dota da possibilidade sempre imediata de podermos fomentar novos movimentos, novas performances, novos desenhos para a vida que escapem à sedução e à apropriação pelas máquinas capitalísticas e midiáticas.
Diante desse instrumental ético e político, que interlocuções seriam possíveis ou que indagações nos tomam de assalto quando tentamos aproximar a clínica da noção de uma ética do não-fascismo?
Em primeiro lugar, a consideração de uma dimensão política do desejo e dos modos pelos quais o desejo investe planos políticos, individuais e/ou coletivos. Tomemos o termo ‘político' não somente pelas práticas culturalmente em curso e suas formas de oposição - partidos, eleições, sindicatos etc. -, mas sim como uma série de processos rizomáticos que permeiam todo o campo social, dos componentes moleculares às grandes organizações mundiais. Seria o caso, portanto, de pensarmos mais em termos de micropolíticas do desejo ou microfísicas parciais, com suas potências de contágio e de propagação, do que em termos de formatação e hierarquização molares. Tratar-se-ia, ainda, de conceber uma certa imanência política à nossa presença corporal no mundo, situando-nos no amplo espectro dos jogos de poder inerentes às guerras estéticas e sociais. Daí, nossa escuta às primeiras questões: em que lutas nossos corpos e pensamentos estão atualmente engajados? Estão a serviço de quais ideais e quais os objetivos de nossas ações cotidianas? Que maquinações políticas fazemos funcionar? Qual a nossa trincheira?
Em segundo lugar, Foucault identifica no desejo sua propriedade ímpar de ser conectável a múltiplos elementos da realidade e de não estar configurado e/ou remetido de antemão a perspectivas invariáveis e universalizantes. Sua condição plural, nômade e imprevisível opera numa temporalidade intrínseca à própria existência, fiel à escuta dos devires que a povoam. Situar aqui nosso pensamento e nossa ação significa levar em conta as conseqüências do modo de vida de cada um para a esfera coletiva; significa, igualmente, pensar nos vários universos que atravessam cada corpo, suas ressonâncias e consonâncias, e o modo como cada indivíduo produz e faz funcionar mundos. Aqui, nossas questões de segunda ordem: se o desejo é feito de multidão, que multidão queremos para o nosso desejo? A que multidão nosso desejo está conectado? Como fazer reverberar no desejo seus componentes de multiplicidade?
Em terceiro lugar, temos a ética. Foucault percebe no livro de Deleuze e Guattari que, no efeito de identificar a presença do fascismo em nosso cotidiano, os autores articulam estratégias que se furtam aos efeitos de dominação e buscam instaurar linhas de fuga para o desejo, resultando, para Foucault, no princípio ético do não-fascismo, ou seja, no exercício experimental que cada um realiza consigo na tentativa de não mais comportar microfascismos nas ações e pensamentos cotidianos. Sendo assim, quais são as formas de vida que, hoje, selecionamos e adotamos? Quais os exercícios ‘espirituais' que realizamos conosco no intuito de inventar modos alternativos e singulares de sociabilidade e de subjetividade? Por quais forças me permito afetar e de quais busco escapar? Quais são as novas sensibilidades que pulsam para uma clínica da diferença?
Longe de responder a essas questões, coloco-me na incômoda posição de somente fazê-las proliferar.

PS: este bom texto foi encontrado no site www.oestrangeiro.net; uma ótima referência para vários assuntos de interesse cultural.

jeudi, janvier 12, 2006

diga-me
diga-me que é mentira essa história de não me amar
diga-me que é mentira
e por você paro agora de respirar


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jeudi, janvier 05, 2006

Resoluções

Querer então uma ausência, uma falta, uma curva de esquina. Querer uma solidão concretizada nos seres e objetos do mundo, como se tudo me interpelasse; uma palavra fora da semântica, o pé na relva e o olho no ar. Uma palavra que suasse água e lágrima de cal, queimando.
No fim, resta um ser que é fim de trilho; terra arrasada, a porta da casa quebrada e a tristeza no porão a tossir.
Resta essa vontade de ser pó. O pó que resta nas frestas dos móveis, o pó que gruda nos vidros dos carros, o pó acumulado nas roupas há tempos encostadas. Ser das rochas a ruga inaudita, imperceptível. Na cachoeira a gota que escapa do conjunto e deita, indolente, na pétala da flor. Resta ser a folha que voa e abandona suas irmãs na copa, com a esperança mórbida de encontrar o forte sol da tarde. Ser as estrias do mármore imperfeito. Ser o desvio, o assovio do vento que bate incólume à proa.
Resta enfim essa vontade grande de lado algum, impulso de deixar passar. Parar de andar e guardar solene a espera, no pé da encruzilhada.