samedi, juin 17, 2006

Por irmã Teodora: a escrita

"Ontem escrevia sobre a batalha e no ruído de louça na pia acreditava estar ouvindo o bater de lanças contra escudos e couraças, o ressoar de elmos atingidos por grandes espadas; do pátio chegavam até mim os golpes do tear das irmãs tecedoras e me parecia uma batida de cascos de cavalos a galope: e, assim, aquilo que minhas orelhas ouviam meus olhos entreabertos transformavam em visões e meus lábios silenciosos em palavras e palavras e a pena se lançava pela folha branca, correndo atrás delas." (p. 44)

"...tanto sobre o amor como sobre a guerra, direi de boa vontade aquilo que consigo imaginar: a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada." (p. 53)

"Começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre nem uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. Quen sabe é melhor assim; talvez quando escrevia com prazer não era milagre nem graça: era pecado, idolatria, soberba. Então, estou fora disso tudo? Não, escrevendo, mudei para melhor: consumi apenas um pouco de juventude ansiosa e inconsciente. De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu." (p. 61)

"É na direção da verdade que corremos, a pena e eu, a verdade que espero vir ao meu encontro, do fundo de uma página branca, e que poderei alcançar somente quando a golpes de pena conseguir sepultar todas as preguiças, as insatisfações, o fastio que vim aqui pagar.
E basta o corre-corre de um rato (...), um sopro de vento imprevisto que faz bater o estore (inclinada a distrair-me, me apresso em reabri-lo), basta o final de um episódio desta história e o início de outro ou apenas um ponto parágrafo e eis que a pena torna a ficar pesada como uma trave e a corrida rumo à verdade se faz incerta." (p. 73)

"Eis como a disciplina de escrivã de convento e a penitência assídua de procurar palavras e meditar sobre a substância última das coisas me transformaram: aquilo que o vulgo - e eu própria até aqui - tem como delícia suprema, isto é, o enredo de aventuras em que consiste todo o romance de cavalaria, agora me parece uma guarnição supérflua, um adorno frio, a parte mais ingrata de minha punição.
Gostaria de correr a narrar, narrar rapidamente, historiar em cada página duelos e batalhas quantos fossem necessários a um poema, mas, se me detenho e tento reler, dou-me conta de que a pena não deixou marcas no papel e as páginas continuam brancas." (p. 87)

"A página tem o seu bem só quando é virada e há a vida por trás que impulsiona e desordena todas as folhas do livro. A pena corre empurrada pelo mesmo prazer que nos faz correr pelas estradas. O capítulo que começamos e ainda não sabemos que história vamos contar é como a encruzilhada que superamos ao sair do convento e não sabemos se nos vai colocar diante de um dragão, um exército bárbaro, uma ilha encantada, um novo amor." (p. 115)

Trechos do livro O cavaleiro inexistente, de Italo Calvino.

mercredi, juin 07, 2006

... apenas horror, ele dizia, um horror que cresceu (hera) e virou fascínio; um certo tom edificante, em mar e asas, a ganhar a falha do ar. Ela tinha o gênio da presteza no olhar, esse ácido que calha a vida – sabe? – e cala o desejo na pele, morte, e explode depois em rubor... A cada vez que a via... Eu falo, falo, sim senhor. Veja bem: ela me apavorava. Era uma presença armada de saia; o batom vermelho, as curvas, tudo isso cava, mina... um mar um manto que cala o caso, o brilho do cabelo... Ah? Já disse que falo, falo, sim senhor. Mas deixa a história correr, agora que meu sangue parou. Agora que meu sangue já não sabe o cheiro dela. A primeira vez, doutor, a primeira vez que ela entrou naquela sala, o sal da vida (sim) moveu o vento num sibilo a ser sorriso, o seu sorriso. O balanço dela, o quadril, as lábios dela, o beijar, ela toda, cada parte dela era um canto à liberdade; um livro branco, um lago imenso e manso. O que há de mal estar em símbolo, sinal, na etimologia de adorar? Que há de mal estar em adorar que logo chega e vira, esse vácuo de nós e dentro, que logo chega e vira apavorar, assustar... horror. Afronta à minha vida assim de fora, e faca e vara, que vê tudo assim tão longe, tão triste, que vê tudo de fora, e noite... A lua – sabe? – me vê me entende me beija e vai embora. E ela dentro, no sol. Tá bom, tá bom... Eu falo, falo, sim senhor. Eu precisava sobreviver, respirar esse meu resto, ignorar o centro e dormitar, deriva, assim... à beira-rio. Na margem. Por isso, naquela noite – a noite minha amiga me envolveu: vulto –, naquela noite eu a esperei no estacionamento e a chamei: sem riso, só ranço. Quando vi, meio verso, minhas mãos amarravam seu pescoço e sua veia a valer e pulsar (emaranhar) ganhava cada ponto dos meus dedos; no olhar dela eu via o ácido calando, cal vazia, sol de supernova. Depois disso, lembro o cansaço, uma dor em dívida, mal resolvida e... e um prazer... uma sensação de missão cumprida... Eu disse e falo, falo... Sobreviver, doutor, sobreviver?


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