Pensatas ao acaso, ou fragmentos de crítica arbitrária
A forma romance é sempre um desafio ao tempo. Por definição, o romance dá-se no tempo, constrói-se no tempo, goza-se no tempo.
Dá-se no sentido de entrega, pois é gênero que busca no tempo sua completude, sua inteireza; no contrato chamado romance, o leitor deve aceitar o tempo como condição. Constrói-se, pois consome tempo. Esfacela-se a diferença entre construir um romance e uma catedral. Ambos demandam projeto, análise, execução e acabamento. Ambos estão submetidos à ordem de um trabalho cotidiano, organizado e quase rotineiro. Goza-se, pois nunca lemos o mesmo romance duas vezes. A leitura está submetida ao contato do leitor com o mundo. Aqui, encontramos um fenômeno comum a qualquer manifestação literária: o fenômeno da experiência (visão de mundo e erudição) capaz de enriquecer o deleite artístico e que, a meu ver, encontra no romance seu melhor exemplo.
***
A poesia é um tanto refratária ao romance. No que diz respeito ao tempo, o poeta dá-se o direito de certa alienação.
Poesia é canto que se contorce no verbo e, para o poeta, a palavra às vezes é desculpa para todo o resto, que ousamos chamar de “conteúdo”, “ideologia”, “mundo cão” e demais patacoadas. Cantar é tentar dizer no tom, na performance, mais do que as palavras dizem.
Não quero dizer, contudo, que a poesia esteja fora do tempo. Tudo o que escrevemos e fazemos é íntimo de uma dada época, seus ideais e convenções. O que gostaria de frisar é que, para o poeta, o trabalho de lidar com o indizível da palavra é muito mais urgente em comparação com o prosador. Do contrário, não é poesia.
***
...dê-me tuas mãos criança, pois o resto, todo o resto, é noventa por cento...
***
O que acabo de dizer no primeiro fragmento é inspirado no que um grande pianista, cujo nome já me escapa, disse certa vez a respeito de seu percurso musical.
Disse ele que no começo todos adoram Mozart. É um compositor jovial, potente e sabiamente equilibrado. Depois de certo tempo, é impossível não perceber o valor de Bach, sua importância, seu peso. Em um terceiro passo, os músicos afogam-se nos românticos (Beethoven e Chopin), em seus ritmos pesados e solenes; como numa busca pelo tom grave. Todavia, espantosamente, já no fim dos estudos, e da vida, todos voltam a Mozart, maldizendo os dias em que pararam de tocá-lo! E, o mais espantoso, tocando-o exatamente da mesma forma como o executavam antes, e, ainda assim, de maneira totalmente diversa, assim como o filho pródigo encontra tudo exatamente da forma que deixara, mas sente, ao mesmo tempo, uma mudança tremenda em tudo que toca, para descobrir, mais tarde, que na verdade ele mesmo é quem mudou, quem muda sempre é quem toca.
A vida subordina-se aos sujeitos da ação, modificando-se de acordo com seus movimentos, voluntários ou não. Os objetos, em si, não têm um valor pré-concebido, determinado, fixo. Somos homens, criamos; símbolos e todas as outras coisas.
***
Acredito que seja interessante pensar o que foi exposto acima no que toca a vida ideológica de nosso tempo. Conferem à ideologia, qualquer que seja, um posto de exagerada importância funcional, como se ela fosse capaz de, por si mesma, nos “dizer” algo, nos “apontar” um caminho. A mesma observação pode ser feita com relação à psicanálise e seu maior objeto, o “ser”. Porém, deixo o tópico em aberto. O assunto é por demais controverso para ser tratado assim, tão impunemente.
***
Voltando ao romance, é preciso dizer que não apenas no nível da experiência encontramos a arquitetura do fenômeno tempo. É possível observá-lo, também, no que toca a gênese da forma.
Desconfio muito dessa mistura de instâncias, (no caso, literatura e sociedade), mas é inegável o fato de que o romance vem à tona com o fim de uma concepção estática do tempo, ainda comum na nobreza de fins do século XVIII. O romance é a forma móvel por excelência, cujas partes e peças elementares podem ser cambiadas e modificadas livremente. Portanto, o gênero que despontava com força no século XIX estaria mais adaptado a um tempo que se mede em escalada (o tempo produtivo), e não mais em ciclos meramente divisórios, nos quais não conta a mudança, mas tão somente o registro do tempo. O romance é a forma do tempo em que se aceita a mudança.
***
Preste atenção nos personagens... Pelo menos nos bons romances, eles começam de um jeito e terminam de outro. Ou começam de um jeito, ficam de outro e outro, e no final voltam para o começo. Ou ainda ficam girando para todo lado que nem biruta de aeroporto... Há mudança...
***
Pode parecer uma proposta boba, mas sempre vale como exercício. Para provar o quão atrelados estão romance e tempo (em suas diversas variantes), procurem se lembrar de quantas vezes tiveram a rara oportunidade de, sossegadamente, pegar um romance e lê-lo, de cabo a rabo, sem interrupções.
Sem ter de lê-lo em pé no metrô, ou no ônibus, ou rapidamente, no horário de almoço, sem aquelas “pescadas” insolentes, tão naturais em olhos cansados de labuta, sem ter de parar para discutir com a(o) namorada(o), sem ter de se preocupar com o horário em que tem de acordar no dia seguinte, com o horário do médico, do veterinário, do dentista, sem ter de se preocupar com o horário em que vai sair dos consultórios do médico, do veterinário ou do dentista, ou ainda, tão simplesmente, sem ter de parar para cumprir com nossas necessidades cotidianas mais banais, como comer e beber água.
O romance nasce com a escalada da vida e com seus percalços inacabados, cansativos, entediantes e, por vezes (ah, a esperança!) recompensadores. O romance nasce com esse impulso que nos faz levantar todos os dias, maldizer o tempo, o metrô, o trabalho, e que nos faz casar, ter filhos e nos emocionar com fins felizes de filmes bobocas...
Enfim, a construção do significado de um romance, a meu ver, está diretamente ligada a todas essas ligeirezas da vivência, arrisco mesmo a dizer que fazem parte da construção de seu significado, já que, obviamente, durante a composição de uma obra é difícil crer que o autor também não esteja sujeito a desafios semelhantes aos que temos durante a leitura. Não sei para você, leitor dessas linhas, mas pensar dessa forma me ajudou a conceber o romance não como um gênero fechado, inteiro, que nos obriga a abarcá-lo como se abarca uma enciclopédia ou um livro de história, mas como um gênero integrado ao fluxo dos acontecimentos, à sua energia, a uma pulsação vibrante e sangrenta que podemos – de forma arbitrária, mas quem se importa? – chamar de vida.
Dá-se no sentido de entrega, pois é gênero que busca no tempo sua completude, sua inteireza; no contrato chamado romance, o leitor deve aceitar o tempo como condição. Constrói-se, pois consome tempo. Esfacela-se a diferença entre construir um romance e uma catedral. Ambos demandam projeto, análise, execução e acabamento. Ambos estão submetidos à ordem de um trabalho cotidiano, organizado e quase rotineiro. Goza-se, pois nunca lemos o mesmo romance duas vezes. A leitura está submetida ao contato do leitor com o mundo. Aqui, encontramos um fenômeno comum a qualquer manifestação literária: o fenômeno da experiência (visão de mundo e erudição) capaz de enriquecer o deleite artístico e que, a meu ver, encontra no romance seu melhor exemplo.
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A poesia é um tanto refratária ao romance. No que diz respeito ao tempo, o poeta dá-se o direito de certa alienação.
Poesia é canto que se contorce no verbo e, para o poeta, a palavra às vezes é desculpa para todo o resto, que ousamos chamar de “conteúdo”, “ideologia”, “mundo cão” e demais patacoadas. Cantar é tentar dizer no tom, na performance, mais do que as palavras dizem.
Não quero dizer, contudo, que a poesia esteja fora do tempo. Tudo o que escrevemos e fazemos é íntimo de uma dada época, seus ideais e convenções. O que gostaria de frisar é que, para o poeta, o trabalho de lidar com o indizível da palavra é muito mais urgente em comparação com o prosador. Do contrário, não é poesia.
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...dê-me tuas mãos criança, pois o resto, todo o resto, é noventa por cento...
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O que acabo de dizer no primeiro fragmento é inspirado no que um grande pianista, cujo nome já me escapa, disse certa vez a respeito de seu percurso musical.
Disse ele que no começo todos adoram Mozart. É um compositor jovial, potente e sabiamente equilibrado. Depois de certo tempo, é impossível não perceber o valor de Bach, sua importância, seu peso. Em um terceiro passo, os músicos afogam-se nos românticos (Beethoven e Chopin), em seus ritmos pesados e solenes; como numa busca pelo tom grave. Todavia, espantosamente, já no fim dos estudos, e da vida, todos voltam a Mozart, maldizendo os dias em que pararam de tocá-lo! E, o mais espantoso, tocando-o exatamente da mesma forma como o executavam antes, e, ainda assim, de maneira totalmente diversa, assim como o filho pródigo encontra tudo exatamente da forma que deixara, mas sente, ao mesmo tempo, uma mudança tremenda em tudo que toca, para descobrir, mais tarde, que na verdade ele mesmo é quem mudou, quem muda sempre é quem toca.
A vida subordina-se aos sujeitos da ação, modificando-se de acordo com seus movimentos, voluntários ou não. Os objetos, em si, não têm um valor pré-concebido, determinado, fixo. Somos homens, criamos; símbolos e todas as outras coisas.
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Acredito que seja interessante pensar o que foi exposto acima no que toca a vida ideológica de nosso tempo. Conferem à ideologia, qualquer que seja, um posto de exagerada importância funcional, como se ela fosse capaz de, por si mesma, nos “dizer” algo, nos “apontar” um caminho. A mesma observação pode ser feita com relação à psicanálise e seu maior objeto, o “ser”. Porém, deixo o tópico em aberto. O assunto é por demais controverso para ser tratado assim, tão impunemente.
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Voltando ao romance, é preciso dizer que não apenas no nível da experiência encontramos a arquitetura do fenômeno tempo. É possível observá-lo, também, no que toca a gênese da forma.
Desconfio muito dessa mistura de instâncias, (no caso, literatura e sociedade), mas é inegável o fato de que o romance vem à tona com o fim de uma concepção estática do tempo, ainda comum na nobreza de fins do século XVIII. O romance é a forma móvel por excelência, cujas partes e peças elementares podem ser cambiadas e modificadas livremente. Portanto, o gênero que despontava com força no século XIX estaria mais adaptado a um tempo que se mede em escalada (o tempo produtivo), e não mais em ciclos meramente divisórios, nos quais não conta a mudança, mas tão somente o registro do tempo. O romance é a forma do tempo em que se aceita a mudança.
***
Preste atenção nos personagens... Pelo menos nos bons romances, eles começam de um jeito e terminam de outro. Ou começam de um jeito, ficam de outro e outro, e no final voltam para o começo. Ou ainda ficam girando para todo lado que nem biruta de aeroporto... Há mudança...
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Pode parecer uma proposta boba, mas sempre vale como exercício. Para provar o quão atrelados estão romance e tempo (em suas diversas variantes), procurem se lembrar de quantas vezes tiveram a rara oportunidade de, sossegadamente, pegar um romance e lê-lo, de cabo a rabo, sem interrupções.
Sem ter de lê-lo em pé no metrô, ou no ônibus, ou rapidamente, no horário de almoço, sem aquelas “pescadas” insolentes, tão naturais em olhos cansados de labuta, sem ter de parar para discutir com a(o) namorada(o), sem ter de se preocupar com o horário em que tem de acordar no dia seguinte, com o horário do médico, do veterinário, do dentista, sem ter de se preocupar com o horário em que vai sair dos consultórios do médico, do veterinário ou do dentista, ou ainda, tão simplesmente, sem ter de parar para cumprir com nossas necessidades cotidianas mais banais, como comer e beber água.
O romance nasce com a escalada da vida e com seus percalços inacabados, cansativos, entediantes e, por vezes (ah, a esperança!) recompensadores. O romance nasce com esse impulso que nos faz levantar todos os dias, maldizer o tempo, o metrô, o trabalho, e que nos faz casar, ter filhos e nos emocionar com fins felizes de filmes bobocas...
Enfim, a construção do significado de um romance, a meu ver, está diretamente ligada a todas essas ligeirezas da vivência, arrisco mesmo a dizer que fazem parte da construção de seu significado, já que, obviamente, durante a composição de uma obra é difícil crer que o autor também não esteja sujeito a desafios semelhantes aos que temos durante a leitura. Não sei para você, leitor dessas linhas, mas pensar dessa forma me ajudou a conceber o romance não como um gênero fechado, inteiro, que nos obriga a abarcá-lo como se abarca uma enciclopédia ou um livro de história, mas como um gênero integrado ao fluxo dos acontecimentos, à sua energia, a uma pulsação vibrante e sangrenta que podemos – de forma arbitrária, mas quem se importa? – chamar de vida.
3 Comments:
Jeff,
Que bom que anda literariamente inspirado! Isto é ótimo! Vc sumiu do msn? Queria falar com você... Ah o meu blog voltou (o weblogger está voltando aos poucos!
Beijos
Fátima
Obviedade, mas o assunto não requer indiferença : o que há de bom nos romances é justamente o fato de podermos continuar a segui-los de onde paramos, em que pesem as caceteações que se nos interpõem. Não são eles que são lidos a intervalos, é a vida que penetra a intervalos com a sua insipidez, a sua mesquinharia, a sua inelutável inconveniência.
Eu vejo a construção de um romance como a confecção de um tapete ou uma tapeçaria: a escolha do desenho, o acertar dos fios no tear, o preenchimento...
Continuação de boas leituras em 2006!
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