dimanche, janvier 30, 2005

eu quero uma mulher que se chame água
e crie e karma
calada,
o desvio de passo e passo,
o olhar sem laço,
o aço incauto da palavra.

eu quero uma mulher que se chame água
e cante o karma
calada
do barulho da chuva
do barulho do rio
do barulho da água.

eu quero uma mulher que se chame água
e cave o canto
de puro karma
de cada passo da vida
do suor de toda a lida
de toda voz calada.

eu quero uma mulher que se chame água
e cave o karma
em todo canto
que haja canto:
chuva, rio e pedra,
o canto sobe, o canto cai,
por terra.

samedi, janvier 29, 2005

dê-me amor
dê-me alguém para matar
dê-me o aço
a malva
uma faca de água
para teu sangue lavar

(no ventre que estala
mar
e mansarda
vejo o vácuo
o vento
do beijo que acaba)

dê-me amor
dê-me alguém para matar
dê-me mais
o aço
a lágrima
da faca de água
que no olhar afiada
te sangra no cais

lundi, janvier 24, 2005

Diário de Prosa Bárbara II

Tal pensamento surgiu à toa. Juro. Vingança do inconsciente contra o cotidiano.
Normalmente, dispenso o freudismo, virou carne de vaca do pensamento inteligente. Ainda assim, lá vai.
Vocês sabem que existe toda aquela teoria sobre o nascimento, né mesmo? Que o homem jamais se recupera do trauma do nascimento. O cara tava lá, quietinho, bonitinho, bem alimentado, sem patrão, sem big brother... e, de repente, um tapa na bunda! O choro, o berro, aquele monte de gente feia falando coisa que você não entende e pronta para te encher de preconceitos e complexos. Pois bem, sofremos isso, de certa forma, todos os dias, meu caro... o relógio... o relógio é nosso parto matinal!

dimanche, janvier 23, 2005

Diário de Prosa Bárbara I

Lido muito bem com meu estresse: identifico a causa e grito com ela.

samedi, janvier 22, 2005

Amor de Bilhete

Amor de bilhete


Era uma tarde chuvosa de segunda-feira. Ando como anda um viciado: à beira-mundo e precipício de necessidade. Ela. Mas que mistério há no olhar que deslocamos o mundo, o ar, a agonia da felicidade. Ela. Mas que estranho barulho (marulho) de sorriso e sândalo que guarda (aguarda) a sensação de abismo. Ela. Esfinge de carne, a beleza tirada da pedra.
Era uma tarde chuvosa de segunda-feira. Ando em busca de terra. É hoje, disse. Hoje lerei nos olhos dela; búzios, búzios e quedas. Aperto o passo ponto a ponto, passo a passo. Hoje. Delírio de água e de friagem. Todo úmido, perdido ao tato, perdido a cada passo de um desejo mal guardado.

***
Era uma vez um sorriso. No cinza intenso da cidade abre alas vida e sangue de alegria e guarda-sol. Era uma vez. Ela sorria como quem amava, sem amar. Ela sorria como o mar; aberto, profundo e misteriosamente claro. Amar ela sorria ela sorria amar o mar.

***
A primeira vez que vi aquele sorriso. Segunda-feira, à noite. A cabeça ainda errava no desvio da madrugada. De repente, lapso, luz e lince... A idéia de epifania como marca de encanto e de agonia.

***

Meu sorriso é cinza, parado, duro. Sorriso de quem sente por sorrir. Sorriso doente, viciado e víbora. Um sorriso que não quer sorrir.

***

Andava reto, rijo. A umidade invadia-me as vestes, o sapato, as curvas do corpo. Ela trabalhava na faculdade. Hoje. A benção do dia, o bilhete em minha mão: crio uma faca dentro de mim, a lâmina daquele sorriso. Andava delírio de caminho e decisão. Tentava abraçar o caminho, reto, sem desvios. Água e rocha batem, prédio, e ornam minha postura hierática. Insistente, bêbedo, tomo de gargalo ansiedade.

***

Na vida só me sei como água: fluir constante e persistente, pares e pássaros, passadas. Fluir constante e persistente de todos entremeios da vida. Triste, alegre, indiferente, minha cabeça é um balaio de toda sorte de fruta e lodo, claridade e agonia... A água não escolhe por onde passa, pedra, rio, montanha, cascalho e casca de árvore – ela passa apenas...
Mas, me quero pedra: a claridade da certeza, imobilidade... O tanto imutável da categoria natural, o que é sempre a si mesmo, orgulhoso, rijo e certo: o branco do mármore, o fogo petulante da cal.

***

Água é vida, a força que ergue clara e constrói. Vida. Sangue da terra. Pedra é matéria morta, imóvel, urna mortuária. Só ganha forma com o homem, vida.
Querer a vida, Ela, e pensar na morte...

***

Todo homem entrega-se a dois devaneios, não necessariamente excludentes: bebida e mulher. Uma delas não te abandona nunca...
Qual a maravilha do álcool? Hipóstase fascinante dos sentidos, busca incessante da clareza... Argumento final de toda retórica intrigante, pista limpa de todo caso insolúvel; suspeito, local e arma do crime. A inculta vítima de si mesma.

***

Mulher, que encanto pavoroso paira, inerte, em teu sorriso. Que penso e pálido mistério mora, oculto, em tuas veias... curvas? Que pensamento invade, cálido, tua boca? Boca (vaso) parco ardor de entrave: como beijo come e caju...

***

Andava reto. Rijo. O suor do corpo já nem me deixava lembrar o que fazer. Cada passo, um desafio. O bilhete no bolso. O bálsamo para vencer a covardia.

***

Tudo começou num bilhete. Morosa noite de segunda-feira, o tempo arrebata a todos, o calor boçal do fim de ano. Ela falava. Musical, me encantava.
Uma amiga desavisada me bate no ombro, um bilhete: “Ela fala como se falasse só para você”. E, desde então, só.

***

Prestar atenção em cada detalhe. A roupa, o jeito, o lindo rebolar de quem nada quer. Anda como o vento, o vento, como o vento mexe as ancas. Prestar atenção na pele, rosada, no perfume, líquido, em cada detalhe do corpo que aponta para a alma de volúpia. Olhar de perto, analítico, de longe, enigmático. O laivo da paixão é todo um delírio de olhar. O olho tem o que olha, possui, e, influenciado, cria tudo o que mais possa interessar. Vê o que quer ver. Dar espaço para a imagem, imaginar. O que valho, pois, se não meus ícones?

***

A faca me aperta, corta. Perto da porta do escritório. Respiro. Penso. Penso. Olho para o corredor. O calor some, o silêncio toma a noite de assalto. Penso na minha boca, na dela, penso em dizer. Penso. Mas, não é hora para pensar. O medo. Pensar o medo. Pensar o medo de pensar. O medo de pensar o medo. Medo de que? Tento bater à porta. Recuo. Volto. Leio informes de murais (já me sinto patético). Volto. Tento bater à porta. Recuo. Volto. Penso. A boca, a boca. Penso. Volto. Recuo. Penso. Tento. Desisto.

***

No fim da escada, volto. Lute, penso. Chego á porta. Paro. Inerte. Inútil. O bilhete na mão, molhado da chuva. A água recua, pára, represada. De repente, a porta é toda uma muralha. Sinto-me inexistir, dissolver. Bata, bata! Recuo. Por um momento, pára o coração. Tudo pára. Sem barulho. O corredor, sem movimento. Bata, bata! A palidez inquietante da inércia... Escuto movimento do outro lado. A porta se abre. Viro-me, rápido. Ando, ligeiro, à frente. O bilhete na mão. Meu peito todo é um recuo, uma desordem - seguro a lágrima, já estou por demais molhado.

***

Sento-me num banco. Bem adiantado. Tentar fingir dignidade. Trêmulo, pego o jornal, de segunda passada. Finjo ler. Ela passa por mim. Prosaica. Prosaica, me cumprimenta. Prosaica, passa... e sorri. Prosaica, se veste aquela pele tão rosa, se veste aquele ar de colibri. Quando falo, não penso: “Eu queria te entregar uma coisa”. E tiro do bolso o bilhete já fatigado, da fatigada chuva e do meu fatigado suor, o desespero. Ela o recebe, sem fingir normalidade – “Obrigada”- e olha para atrás. Homem alto, constituição física mediana, olhar comum, sorridente ao vê-la. Entendo o senso, o sal, no olhar dos dois... Entendo a vermelhidão que lhe tomara o rosto, quando do papel, entendo o sorriso do homem. O sorriso que não posso dar. Ela torna em minha direção. Já ando, dei as costas. Já ando. Retiro-me da ópera, ator sem talento. Já ando. Não olho para trás, com toda a certeza de que jamais esquecemos as coisas para as quais damos as costas.