Parte I – Do teatroO teatro é uma espécie de pacto que autores de baixo calibre (lê-se ruins) fazem com a bestialidade. Não pode ser considerada civilizada uma forma de arte que preconiza a comoção pública, que esfacela a intimidade do efeito estético na confusão da turba.
A intimidade é o egoísmo que devemos a nossas sensações; nada, portanto, mais citadino, limpo e republicano.
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Por que bestialidade? Ora, vocês por acaso já viram um ator? Se eu precisar de alguém para não entender meu texto, tenho leitores, com a vantagem de que eles não poderão estragá-lo na frente de centenas de pessoas durante uma temporada inteira...
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Certa vez, num teatro (quando ainda ia a teatros), os selvagens desajuizados e polianas que, por afetação, chamamos atores resolveram fazer o “aquecimento” na frente da platéia, provavelmente com a intenção de cativá-la, “convidando-a” a participar do espetáculo. Pois bem, eles começaram a girar em círculos, batendo os pés no chão e produzindo sons aleatórios em baixo volume, como cochichos de ciganos imundos antes do ataque a um vilarejo. Conforme os giros ficavam mais rápidos, os cochichos foram se transformando em silvos, gemidos, urros, uivos, batidas, gritos... Jogavam-se no chão, e nas paredes, como se fossem loucos em um ataque de fúria e febre, como se não tivessem ossos! Pensei comigo: isso será uma convenção druida, ou algum ritual exótico e inútil de alguma tribo não descoberta?
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Que tipo de arte tem o orgulho de ostentar o nome “espetáculo”?
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E não me venha falar de Shakespeare! Este, antes de qualquer outra inclinação, era poeta. O Lirismo corria-lhe nas veias. Assim como também ocorria com Racine, ou com os gregos. Nestes homens, o impulso primeiro era a confusão interna, a angústia, o amargor... Apenas por um acaso do destino resolveram seus nós artísticos por meio do drama. O texto lhes é absolutamente autônomo, não carece do palco.
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Minha melhor experiência no teatro ocorreu há cerca de seis anos atrás. Era uma dessas noites quentes de verão, na qual o calor típico dos trópicos não respeita a mínima inclinação intelectual, por menor que seja. Namorava uma garota que tinha aquela inocência estúpida similar a dos atores. Ela acreditava no teatro como meio de “libertação do indivíduo” e como forma de “resistência ao poder”. Ocorre-me hoje que deveria ter lhe perguntado a que se referia tal libertação (minhas neuras e travas internas, afinal, são meu brinquedo predileto), e como poderíamos definir resistência. Nesse nosso mundo, de concepções filosóficas tão tacanhas, o simples ato de chupar um picolé de limão no escritório pode ser considerado “resistência”. Noves fora as digressões, estávamos acomodados nas dependências da sala, disposta de forma bem bizarra: não havia um espaço reservado ao público, como reza a lei canônica; tudo era espaço, até quase o teto, de forma que a arquitetura humana assim constituída era quase um show, tétrico, a parte; e tal descrição, leitor, não é desvio do tema, é parte integrante dele, pois motiva os acontecimentos seguintes. Assim, num repente, como uma dádiva enviada pelos deuses a um pobre, reles, pessimista e amargo mortal, vi-me diante de meu destino. Sim, meu destino! Pois nada em minha vida equiparar-se-á a tal visão! Deus sabe que vivi para aquilo. Num movimento irritado e quase apopléctico, procurava observar a cena que ocorria logo abaixo de mim (vide a descrição das dependências), quando, num momento de rara sensibilidade espiritual, senti uma leve pressão nas costas da mão esquerda, leve, nada dorida. Movido pela curiosidade, esqueço a cena e viro-me para a Beleza. Era Giulia Gam que pisava em minha mão. O frio. Por um instante, foi como se toda a minha alma refrigerasse. Todavia, paciência leitor, esta não é a parte
prima: ela vestia tão-só um manto (o costume da peça exigia o traje), e, considerando a posição em que eu estava, olhando-a de baixo para cima, graças ao vento, à curiosidade e à imaginação, pude perscrutar o que todo reles mortal sempre quis.Ela foi-se, deixando-me só, com meu frio e meu desejo. Imaginando ser Tirésias após a visão de Minerva ao banho. Naquele dia, pouco falei. Tudo o mais pareceu banal. Meu namoro, também pudera, terminou três meses depois, modorrento, enfadonho.