O mundo visto de meu umbigo: considerações autoritárias, sucintas, subjetivas e pouco claras a respeito da arte e da busca pelo sublime.
Parte I – Do teatro
O teatro é uma espécie de pacto que autores de baixo calibre (lê-se ruins) fazem com a bestialidade. Não pode ser considerada civilizada uma forma de arte que preconiza a comoção pública, que esfacela a intimidade do efeito estético na confusão da turba.
A intimidade é o egoísmo que devemos a nossas sensações; nada, portanto, mais citadino, limpo e republicano.
***
Por que bestialidade? Ora, vocês por acaso já viram um ator? Se eu precisar de alguém para não entender meu texto, tenho leitores, com a vantagem de que eles não poderão estragá-lo na frente de centenas de pessoas durante uma temporada inteira...
***
Certa vez, num teatro (quando ainda ia a teatros), os selvagens desajuizados e polianas que, por afetação, chamamos atores resolveram fazer o “aquecimento” na frente da platéia, provavelmente com a intenção de cativá-la, “convidando-a” a participar do espetáculo. Pois bem, eles começaram a girar em círculos, batendo os pés no chão e produzindo sons aleatórios em baixo volume, como cochichos de ciganos imundos antes do ataque a um vilarejo. Conforme os giros ficavam mais rápidos, os cochichos foram se transformando em silvos, gemidos, urros, uivos, batidas, gritos... Jogavam-se no chão, e nas paredes, como se fossem loucos em um ataque de fúria e febre, como se não tivessem ossos! Pensei comigo: isso será uma convenção druida, ou algum ritual exótico e inútil de alguma tribo não descoberta?
***
Que tipo de arte tem o orgulho de ostentar o nome “espetáculo”?
***
E não me venha falar de Shakespeare! Este, antes de qualquer outra inclinação, era poeta. O Lirismo corria-lhe nas veias. Assim como também ocorria com Racine, ou com os gregos. Nestes homens, o impulso primeiro era a confusão interna, a angústia, o amargor... Apenas por um acaso do destino resolveram seus nós artísticos por meio do drama. O texto lhes é absolutamente autônomo, não carece do palco.
***
Minha melhor experiência no teatro ocorreu há cerca de seis anos atrás. Era uma dessas noites quentes de verão, na qual o calor típico dos trópicos não respeita a mínima inclinação intelectual, por menor que seja. Namorava uma garota que tinha aquela inocência estúpida similar a dos atores. Ela acreditava no teatro como meio de “libertação do indivíduo” e como forma de “resistência ao poder”. Ocorre-me hoje que deveria ter lhe perguntado a que se referia tal libertação (minhas neuras e travas internas, afinal, são meu brinquedo predileto), e como poderíamos definir resistência. Nesse nosso mundo, de concepções filosóficas tão tacanhas, o simples ato de chupar um picolé de limão no escritório pode ser considerado “resistência”. Noves fora as digressões, estávamos acomodados nas dependências da sala, disposta de forma bem bizarra: não havia um espaço reservado ao público, como reza a lei canônica; tudo era espaço, até quase o teto, de forma que a arquitetura humana assim constituída era quase um show, tétrico, a parte; e tal descrição, leitor, não é desvio do tema, é parte integrante dele, pois motiva os acontecimentos seguintes. Assim, num repente, como uma dádiva enviada pelos deuses a um pobre, reles, pessimista e amargo mortal, vi-me diante de meu destino. Sim, meu destino! Pois nada em minha vida equiparar-se-á a tal visão! Deus sabe que vivi para aquilo. Num movimento irritado e quase apopléctico, procurava observar a cena que ocorria logo abaixo de mim (vide a descrição das dependências), quando, num momento de rara sensibilidade espiritual, senti uma leve pressão nas costas da mão esquerda, leve, nada dorida. Movido pela curiosidade, esqueço a cena e viro-me para a Beleza. Era Giulia Gam que pisava em minha mão. O frio. Por um instante, foi como se toda a minha alma refrigerasse. Todavia, paciência leitor, esta não é a parte prima: ela vestia tão-só um manto (o costume da peça exigia o traje), e, considerando a posição em que eu estava, olhando-a de baixo para cima, graças ao vento, à curiosidade e à imaginação, pude perscrutar o que todo reles mortal sempre quis.Ela foi-se, deixando-me só, com meu frio e meu desejo. Imaginando ser Tirésias após a visão de Minerva ao banho. Naquele dia, pouco falei. Tudo o mais pareceu banal. Meu namoro, também pudera, terminou três meses depois, modorrento, enfadonho.
O teatro é uma espécie de pacto que autores de baixo calibre (lê-se ruins) fazem com a bestialidade. Não pode ser considerada civilizada uma forma de arte que preconiza a comoção pública, que esfacela a intimidade do efeito estético na confusão da turba.
A intimidade é o egoísmo que devemos a nossas sensações; nada, portanto, mais citadino, limpo e republicano.
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Por que bestialidade? Ora, vocês por acaso já viram um ator? Se eu precisar de alguém para não entender meu texto, tenho leitores, com a vantagem de que eles não poderão estragá-lo na frente de centenas de pessoas durante uma temporada inteira...
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Certa vez, num teatro (quando ainda ia a teatros), os selvagens desajuizados e polianas que, por afetação, chamamos atores resolveram fazer o “aquecimento” na frente da platéia, provavelmente com a intenção de cativá-la, “convidando-a” a participar do espetáculo. Pois bem, eles começaram a girar em círculos, batendo os pés no chão e produzindo sons aleatórios em baixo volume, como cochichos de ciganos imundos antes do ataque a um vilarejo. Conforme os giros ficavam mais rápidos, os cochichos foram se transformando em silvos, gemidos, urros, uivos, batidas, gritos... Jogavam-se no chão, e nas paredes, como se fossem loucos em um ataque de fúria e febre, como se não tivessem ossos! Pensei comigo: isso será uma convenção druida, ou algum ritual exótico e inútil de alguma tribo não descoberta?
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Que tipo de arte tem o orgulho de ostentar o nome “espetáculo”?
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E não me venha falar de Shakespeare! Este, antes de qualquer outra inclinação, era poeta. O Lirismo corria-lhe nas veias. Assim como também ocorria com Racine, ou com os gregos. Nestes homens, o impulso primeiro era a confusão interna, a angústia, o amargor... Apenas por um acaso do destino resolveram seus nós artísticos por meio do drama. O texto lhes é absolutamente autônomo, não carece do palco.
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Minha melhor experiência no teatro ocorreu há cerca de seis anos atrás. Era uma dessas noites quentes de verão, na qual o calor típico dos trópicos não respeita a mínima inclinação intelectual, por menor que seja. Namorava uma garota que tinha aquela inocência estúpida similar a dos atores. Ela acreditava no teatro como meio de “libertação do indivíduo” e como forma de “resistência ao poder”. Ocorre-me hoje que deveria ter lhe perguntado a que se referia tal libertação (minhas neuras e travas internas, afinal, são meu brinquedo predileto), e como poderíamos definir resistência. Nesse nosso mundo, de concepções filosóficas tão tacanhas, o simples ato de chupar um picolé de limão no escritório pode ser considerado “resistência”. Noves fora as digressões, estávamos acomodados nas dependências da sala, disposta de forma bem bizarra: não havia um espaço reservado ao público, como reza a lei canônica; tudo era espaço, até quase o teto, de forma que a arquitetura humana assim constituída era quase um show, tétrico, a parte; e tal descrição, leitor, não é desvio do tema, é parte integrante dele, pois motiva os acontecimentos seguintes. Assim, num repente, como uma dádiva enviada pelos deuses a um pobre, reles, pessimista e amargo mortal, vi-me diante de meu destino. Sim, meu destino! Pois nada em minha vida equiparar-se-á a tal visão! Deus sabe que vivi para aquilo. Num movimento irritado e quase apopléctico, procurava observar a cena que ocorria logo abaixo de mim (vide a descrição das dependências), quando, num momento de rara sensibilidade espiritual, senti uma leve pressão nas costas da mão esquerda, leve, nada dorida. Movido pela curiosidade, esqueço a cena e viro-me para a Beleza. Era Giulia Gam que pisava em minha mão. O frio. Por um instante, foi como se toda a minha alma refrigerasse. Todavia, paciência leitor, esta não é a parte prima: ela vestia tão-só um manto (o costume da peça exigia o traje), e, considerando a posição em que eu estava, olhando-a de baixo para cima, graças ao vento, à curiosidade e à imaginação, pude perscrutar o que todo reles mortal sempre quis.Ela foi-se, deixando-me só, com meu frio e meu desejo. Imaginando ser Tirésias após a visão de Minerva ao banho. Naquele dia, pouco falei. Tudo o mais pareceu banal. Meu namoro, também pudera, terminou três meses depois, modorrento, enfadonho.
5 Comments:
Essa sua última ida gloriosa ao teatro não foi aquela montagem do Zé Celso, foi?
Mas de resto, muito crítico o texto, muito bom.
Sim, foi uma sua montagem. O mais curioso a respeito desse gajo é que suas entrevistas até que não são ruins. São bem articuladas, cheias de um falatório muito sofista, e quando não têm o caráter da utilidade, têm o bebefício do humor.
E isso porque você nunca viu o cu do Zé Celso. Eu já vi.
Argh!!!! Como é que é?!!?
É como qualquer cu de velho sodomita, suponho. Mas não sou bom de anatomia.
Também vi outros órgãos à mostra, no mesmo espetáculo. Muitas mulheres nuas correndo, às vezes se enlaçando com pessoas da platéia, convidadas a se despir também. Também havia um ator vestido de diabrete, com uma roupa colante que o envolvia por inteiro, com exceção da parte pubiana, em que havia um furo estrategicamente praticado para que dali pendesse o seu membro viril. Nada disso me escandalizou particularmente, se era essa a intenção de tão flagrante mediocridade. O que me incomodou bastante foi a duração da peça: quase seis horas. Eu as suportei com algum estoicismo, até, mas já pelo fim comecei a vaiar e protestar, dizendo: "termina, termina". Se alguém viesse a mim tomar satisfações, eu reponderia com Boileau (logo quem!): "é um direito que se adquire logo que se passa por aquela porta".
Enfim, foi isso. Em outro espetáculo da mesma trupe, ejacularam na cabeça de uma mocinha japonesa, que ficou com os cabelos tisnados da linfa seminal de um ator. É mesmo uma falta de civilidade. Se o episódio fosse comigo, acho iniciaria ali uma solitária sedição. Por isso, digo a quem pretende ir ver uma peça no Oficina: "vá de chapéu".
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