Das paixões humanas: um ensaio
Era um domingo à tarde. Esparramado no sofá, ele treinava o ágil dedo na arte do zapping, trocando de canal, pulando pelos programas de esporte. A pouco, terminara o almoço, agora curtido na salmoura do estomago e enviando provas de uma passageira existência a cada cinco minutos mediante suaves arrotos. Sem temer o cenário, ela, quase leite e gata telúrica, aproxima-se:
- Benhêêêê... Posso fazê uma pergunta?
Ele, sem virar a cabeça, responde:
- Claro, ué...
E ela, com a certeza de um bravo:
- Qual a coisa que você mais ama no mundo?
- Ah!!! Essa é fácil!!!
Ela treme. Os olhos, cheios, brilham e arregalam-se de cor e supernova:
- O que!? O que?!!
- Uai, o Coringão!
A esta cena seguiu-se um breve silêncio. Atônita, ela não acha palavra; a cabeça perdeu o dicionário, resumindo seu potencial comunicativo em signos e interjeições primais, quase inaudíveis, que, mescladas ao ímpeto do desgosto e da raiva, findos cinco minutos de contemplação, explodem num só mar de gestos, urros e gemidos.
Nesse ínterim, nosso herói dominical resume-se a olhar babacamente a cena, abanando as mãozinhas muito gordas e inúteis, como um operário que tenta, com o dedo, impedir a rachadura do dique. Depois de muita súplica, ela solta:
- O que?!!! O que você disse?!! Seu animal!!!
- Mas amor...
- Não me chama assim sua besta!!! Faço de tudo por você!! De tudo!! Para perder lugar para um time! Um time estúpido! Quem lava tua roupa, anta! Faço de tudo, então, para ser a segunda?!
Quando ela disparou a frase, petardo de dor, ele, rápido, desvia o olhar, abaixa a cabeça, moleque com o dedo no pote de doce. Ela, intrigada, pergunta:
- Que olhar é esse, hein? Cê tá escondendo alguma coisa, primata, hein?
Ele bate pelos cantos, rato, e não alcança a resposta. Ela, imperatriz, fulmina:
- Fala, geléia!!
- Em segundo, em segundo lugar – a voz tombando, rasgada, réptil extinto protegendo-se com as mãozinhas – Em segundo lugar vem a lasanha!
Ao som da sentença, ela tomba inerte. Procura apoio no braço do sofá. Ele tenta levantá-la, ao que, por orgulho, ela rejeita efusivamente, com um movimento bêbado da mão.
Em prantos, deixa a sala e isola-se na varanda, sentada numa cadeira de balanço, olhando o crepúsculo. Olhar insosso, boca sem palavra.
Ficou lá até tarde da noite, quando, descabelada, fantasmagórica, tenta travar um último diálogo com o marido:
- Afinal, verme, onde estou? Um ser humano merece saber onde está e para onde vai. Onde estou, verme? Onde estou?
Tolo e paquidérmico, ele limpa o suor da testa e toma fôlego. Procura o jeito, cambaleia, vira, vai e volta, vira e volta, cambaleia e morde a língua.
- Fala imbecil!!! Fala a verdade!
Respira. Imagina-se gladiador a entrar na arena, como no filme que viu na TV. Faz a mesura da palavra e explica:
- Em terceiro lugar, vem a cerveja. Veja bem, cê sabe que, num país desse, tropical, né? Não dá prá viver sem refresco, né?
Ela impávida, não move músculo. Endurecera. Vendo isso como sinal de sorte, nosso Sancho toma coragem:
- E em quarto vem minha mãe, né? Ela me carregou, né? Me pariu... Mas (ar de consolo) cê tá lá, firme no quinto! – já tentando ganhar espaço – Preocupa não...
Dessa vez, ela nem chora. Sobe novamente à varanda. No dia seguinte, já não estava em casa. De nada adiantou procurá-la por toda parte; virou vento, pó. Orgulho, orgulho, ele pensa...
Destruída a esperança de reencontro e perdão, nunca mais saiu de casa. Passa a vida agarrado a uma bandeira do Corinthians, comendo lasanha de microondas e bebendo cerveja. Sua mãe, que no começo o visitava aos domingos, não o atende mais ao telefone.
De uns tempos para cá, enquanto vê TV, já não fala, apenas balbucia, repetidamente, uma única palavra: Orgulho, orgulho...
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.
- Benhêêêê... Posso fazê uma pergunta?
Ele, sem virar a cabeça, responde:
- Claro, ué...
E ela, com a certeza de um bravo:
- Qual a coisa que você mais ama no mundo?
- Ah!!! Essa é fácil!!!
Ela treme. Os olhos, cheios, brilham e arregalam-se de cor e supernova:
- O que!? O que?!!
- Uai, o Coringão!
A esta cena seguiu-se um breve silêncio. Atônita, ela não acha palavra; a cabeça perdeu o dicionário, resumindo seu potencial comunicativo em signos e interjeições primais, quase inaudíveis, que, mescladas ao ímpeto do desgosto e da raiva, findos cinco minutos de contemplação, explodem num só mar de gestos, urros e gemidos.
Nesse ínterim, nosso herói dominical resume-se a olhar babacamente a cena, abanando as mãozinhas muito gordas e inúteis, como um operário que tenta, com o dedo, impedir a rachadura do dique. Depois de muita súplica, ela solta:
- O que?!!! O que você disse?!! Seu animal!!!
- Mas amor...
- Não me chama assim sua besta!!! Faço de tudo por você!! De tudo!! Para perder lugar para um time! Um time estúpido! Quem lava tua roupa, anta! Faço de tudo, então, para ser a segunda?!
Quando ela disparou a frase, petardo de dor, ele, rápido, desvia o olhar, abaixa a cabeça, moleque com o dedo no pote de doce. Ela, intrigada, pergunta:
- Que olhar é esse, hein? Cê tá escondendo alguma coisa, primata, hein?
Ele bate pelos cantos, rato, e não alcança a resposta. Ela, imperatriz, fulmina:
- Fala, geléia!!
- Em segundo, em segundo lugar – a voz tombando, rasgada, réptil extinto protegendo-se com as mãozinhas – Em segundo lugar vem a lasanha!
Ao som da sentença, ela tomba inerte. Procura apoio no braço do sofá. Ele tenta levantá-la, ao que, por orgulho, ela rejeita efusivamente, com um movimento bêbado da mão.
Em prantos, deixa a sala e isola-se na varanda, sentada numa cadeira de balanço, olhando o crepúsculo. Olhar insosso, boca sem palavra.
Ficou lá até tarde da noite, quando, descabelada, fantasmagórica, tenta travar um último diálogo com o marido:
- Afinal, verme, onde estou? Um ser humano merece saber onde está e para onde vai. Onde estou, verme? Onde estou?
Tolo e paquidérmico, ele limpa o suor da testa e toma fôlego. Procura o jeito, cambaleia, vira, vai e volta, vira e volta, cambaleia e morde a língua.
- Fala imbecil!!! Fala a verdade!
Respira. Imagina-se gladiador a entrar na arena, como no filme que viu na TV. Faz a mesura da palavra e explica:
- Em terceiro lugar, vem a cerveja. Veja bem, cê sabe que, num país desse, tropical, né? Não dá prá viver sem refresco, né?
Ela impávida, não move músculo. Endurecera. Vendo isso como sinal de sorte, nosso Sancho toma coragem:
- E em quarto vem minha mãe, né? Ela me carregou, né? Me pariu... Mas (ar de consolo) cê tá lá, firme no quinto! – já tentando ganhar espaço – Preocupa não...
Dessa vez, ela nem chora. Sobe novamente à varanda. No dia seguinte, já não estava em casa. De nada adiantou procurá-la por toda parte; virou vento, pó. Orgulho, orgulho, ele pensa...
Destruída a esperança de reencontro e perdão, nunca mais saiu de casa. Passa a vida agarrado a uma bandeira do Corinthians, comendo lasanha de microondas e bebendo cerveja. Sua mãe, que no começo o visitava aos domingos, não o atende mais ao telefone.
De uns tempos para cá, enquanto vê TV, já não fala, apenas balbucia, repetidamente, uma única palavra: Orgulho, orgulho...
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.
5 Comments:
hahahahahaaa.
sem dúvida, um belo ensaio pra se entender a alma masculina.
e depois dessa, já me fica no ar a dúvida se ainda te amo... hahahahaaa
posso ir mesmo é? olha que eu sou daquelas chatas que pega e vai MESMO ;]
mas é quase um luis fernando veríssimo, nas suas comédias da vida privada.
fantástico!
continue assim, mas não esqueça dos pequenos poemas que conseguem chegar ao âmago da questão em apenas 4 linhas...
bjos!
Dé
lembrei-me de um xingamento um tanto poético, que certamente eu diria se a mulher em questão fosse eu: "que disses, energúmeno?"
A crónica dos subúrbios; fica quase melíflua na sua pena.
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